#907-Deixe-me entrar

O texto de hoje foi escrito por um convidado. Thiago Moyses é cineasta e dirigiu recentemente curta de animação Kcrisis.

*Por Thiago Moyses

Deixe-me Entrar não tem nenhuma indicação ao Oscar e praticamente contou com uma fraquíssima campanha de marketing no Brasil. O que prova, infelizmente, que o sucesso de um filme comercialmente, e até ouso afirmar, em festivais importantes pelo mundo, deve-se quase totalmente ao dinheiro. Talvez se tivesse um ator de peso, mais famoso, poderia empurrar o filme para o sucesso imediato, e curto. Porém o diretor Matt Reeves parece acertar em todas suas escolhas.

Primeiro colocou a cara a tapa ao refilmar em pouco tempo um recente sucesso da cadeia de filmes independentes, o filme sueco Deixa Ela Entrar. Na verdade, de refilmagem tem pouco, ele foi direto ao autor do romance original e também do roteiro do filme sueco, o escritor John Ajvide Lindqvist. Para respeitar a obra fez o que todos deveriam: a adaptou com sua visão e sensibilidade. Fez algo raríssimo no cinema: o filme americano é muito superior ao original sueco. E isso acontece quando é avaliado todos os elementos nos dois filmes.
 


Antes de entrar nas qualidades do filme americano seria bom explicar o porquê do sucesso do filme sueco. O seu enredo foi essencial para que esse filme “B” independente fizesse sucesso, uma história clássica de vampiro – que até soa original comparando-se as distorções do último século no cinema e na literatura – aplicada na história de amor entre dois adolescentes de 12 anos. O filme sueco fica por aí, inconsistente, apelativo e trash em alguns momentos. Vai agradar público de festival e de filme independente. E façamos justiça: o remake americano pouco tem a ver com o original. Não basta o enredo ser parecido (pois até isso é diferente) – a forma de filmar e lidar com os personagens torna o americano totalmente diferente do sueco.

Matt Reeves fez diferente. Fez um filme “A”. Talvez o mais bem realizado filme independente (e sim, este filme é uma produção independente americana e inglesa). Ele fez as escolhas certas e dirigiu com perfeição um longa que poderia assustar por ter praticamente duas horas de duração narrando a história de amor entre dois adolescentes de 12 anos. Aí começa o grande primeiro acerto do diretor. Mesmo com o currículo respeitável da dupla mirim, ele fez um teste para escolhê-los no elenco. Kodi Smit-Mcphee (ator australiano de A Estrada) e Chloe Moretz (a Hit Girl de Kick Ass – Quebrando Tudo) são os prodígios.

O resultado: uma das melhores, senão a melhor interpretação de crianças que já vi no cinema. Só eles, que além de excepcionais no talento são totalmente fotogênicos para uma câmera de cinema, já garantem o sucesso do filme. Dominam o timming (tempo da atuação) de forma surpreendente, sustentam tempos que poderiam ser considerados mortos se suas atuações não fossem profundas e sutis. Muitas vezes nem precisam falar, só trocam olhares, e o público esquece completamente que são atores lá. São duas crianças reais, mesmo com o sobrenatural as rondando.

Além da dupla principal, Matt acertou em todo elenco de apoio. O excelente Richard Jenkins está irreconhecível interpretando o pai da menina vampira. Elias Koteas empresta um carisma enorme ao personagem do policial que está atrás do misterioso assassino que tira todo o sangue de suas vítimas, mesmo nas poucas cenas em que aparece.
 

O cineasta acerta também nos conceitos e nas opções estéticas para narrar. A história de amor sombrio, com toques de terror clássico, precisava ter uma fotografia escura. Dessa necessidade ele tirou, junto com seu diretor de fotografia, talvez a mais bonita fotografia que já vi no cinema. Primeiro, optou por uma abertura total de diafragma que reduz o campo focal ao mínimo – sempre
só um pequeno trecho da imagem está em foco, o que dá uma textura linda à imagem.

Também renunciou à preguiçosa opção de sempre de uma luz neutra e carregou nas cores das luzes que deveriam iluminar os ambientes. E as escolheu de acordo com as emoções de seus personagens em cada cena. O parquinho infantil na frente da casa de Owen (Smit-McPhee) tem uma luz amarela alaranjada forte a noite – naturalmente dos postes noturnos e das luzes das casas – mas também é o lugar onde ele flerta com Abby (Moretz). A luz é quente, mesmo sendo noite,
fugindo dos clichês da luz azul. A escola de Owen é fria e esbranquiçada durante o dia. A piscina, seja de dia ou de noite, sempre sombria – o que narra, junto com o menino assistindo, todo vestido, às outras crianças nadando, que ele não sabe nadar.

Na mesma escola a trilha de terror é mais pesada – tão pesada ou mais que nas cenas de assassinato. Dessa forma o bullying sofrido por Owen ganha outra dimensão. Os sons de impacto e da voz do seu algoz na escola ficam mais alto que o natural, o que reforça a percepção de medo do menino em relação ao espaço escolar. E sempre estamos no ponto de vista psicológico do menino. Todos personagens são vistos e ouvidos pela sua perspectiva. Seja pelo telescópio com que bisbilhota os vizinhos, pelas conversas que ouve através da parede, pela janela do seu quarto quando observa Abby chegando. Pelo olho mágico da porta.

O contra-plongée (visão de baixo para cima) quando diante de adultos. E o mais marcante: Sua mãe, que apesar de muito bem construída psicologicamente, nunca é vista. Estando sem foco, ou com a cabeça fora do enquadramento e de outras formas geniais encontradas pelo diretor. A trilha sonora também é maravilhosa. Tanto a original composta de forma brilhante por Michael Giacchino e as canções da época escolhidas. Devo lembrar que o filme se passa em 1983, em Los Alamos, uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos. Para quem viveu nos anos 80 ficam momentos nostálgicos na paquera de Owen com Abby, jogando Ms. PacMan no fliperama ao som de Do You Really Want To Hurt Me, do Boy George e o Culture Club. E outras canções que marcam bem a época e o filme como Let’s Dance, de David Bowie e as bandas Freur (Doot Doot, Greg Kihn Band (The Break Up Song) e Blue Oyster Cult (I’m Burnin for You).

Matt Reeves, criador da série Felicity e diretor do longa Cloverfield – Monstro, narra uma das mais belas histórias de amor no cinema. Marcada por sangue, pedofilia e uma relação dúbia de medo e atração, o filme não faz concessões. Critica profundamente a sociedade americana em seu falso puranismo e na violência arreigada em seu âmago. A censura de 14 anos engana. Precisa-se de muita maturidade para não confundir as coisas no filme. Talvez a tamanha pertinência nas críticas à sociedade americana fez o filme ser esquecido em premiações importantes, como o Globo de Ouro e o Oscar.
 

Vale lembrar que o filme Era Uma Vez Na América, de Sérgio Leone, foi um fracasso de bilheteria na época (anos 80) pelo mesmo motivo e muitos anos depois acabou se tornando o DVD mais vendido nos Estados Unidos.

Além da narrativa precisa e digamos, perfeita, os planos (enquadramentos) são maravilhosos – e muitos chegam a ser geniais – como a sensacional cena do capotamento do carro (não vou dar detalhes para não contar o filme). É impressionante – tão impressionante que o momento seguinte o diretor dá um tempo ao público para recuperar o fôlego. O filme precisa ser visto mais de uma vez. Cada vez mais é possível ver um novo detalhe fantástico que acrescenta na apreciação dessa obra de arte rara no cinema atual americano.

Dois adolescentes de 12 anos tem um relacionamento mais profundo e sombrio que outros filmes de vampiros que apareceram recentemente nos cinemas. Por sorte eles provaram que é possível contar uma boa história de vampiro. Um filme que passa tensão, faz pensar e emociona. Um clássico moderno. Depois de assistirem ao filme não deixem de vasculhar na internet e procurar a cena deletada (maravilhosa) e o teste de Chloe Moretz para o papel.
Cotação: DaiblogDaiblogDaiblogDaiblogDaiblog

Veja aqui o trailer do filme Deixe-me entrar:


Let Me In (EUA, 2010) Dirigido por Matt Reeves. Estrelando Kodi Smit-McPhee, Chloe Moretz, Richard Jenkins, Cara Buono, Elias Koteas, Sasha Barrese, Dylan Kenin, Chris Browning, Ritchie Coster, Dylan Minnette, Jimmy ‘Jax’ Pinchak…

 Quer ver o filme Deixe-me entrar?

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